Opinião

OPINIÃO: Os bebês que sobrevivem

21 MAR 2024 • POR Por: Fábio Marchi - Jornalista • 10h07
Fábio Marchi - Jornalista - Foto: Arquivo Pessoal

Minha cidade natal - Corumbá (MS) - hoje vive uma das suas maiores crises na saúde pública, com um recorde de bebês mortos (e mães) durante a gestação, no parto ou no pós parto, tudo por conta de negligência médica e descaso na gestão municipal.

A morte de bebês é um trauma terrível para a família e também afeta toda nossa comunidade, pois a cada bebê morto, um pouco da nossa Esperança se vai junto com ele, também.

Mas existem aqueles bebês que sobrevivem ao trauma de um parto problemático, provocado por negligência médica - e eu sou um deles: quando minha mãe estava em trabalho de parto e sem dilatação, o médico (um RENOMADO e AGRACIADO médico obstetra da velha guarda da região) que tinha acompanhado todo o meu pré-natal e sabia de todas as condições de saúde da minha genitora, ignorou os pedidos da minha mãe de fazer uma cesariana, APENAS PORQUE ESTAVA EM SEU PLANTÃO GRATUITO, para resolver fazer meu parto na madrugada do dia 9 de abril, quase 18 horas depois que minha mãe internou na maternidade, com dores.

E assim, em uma cesariana de emergência, nasci roxo, após ter sofrimento fetal e defecado no útero materno, por essas longas horas que por muito pouco, quase custaram a minha vida.

Sobrevivi à negligência médica, mas não às consequências dela - afinal de contas, toda ação possui uma reação. No meu caso, foi uma disritmia cerebral detectada aos 4 anos de idade, no meu primeiro desmaio. Ali, ficaram sabendo que uma parte do meu cérebro havia morrido por falta de oxigenação durante o parto e que eu teria um longo tratamento pela frente.

Passei praticamente toda a minha infância e adolescência sendo tratado com Gardenal e outros remédios fortíssimos, porque caso não fosse medicado, tinha convulsões, períodos de ausência mental e deficiência cognitiva. Hiperativo, eu era considerado uma criança “com o diabo no corpo”, não parava quieto, minha cabeça estava sempre recheada de pensamentos e ideias que iam da Astronomia, Medicina ou religião para o gibi da Mônica e jogar bolita em questão de segundos.

Minha vida sempre foi marcada pela impulsividade, pelo desafio à autoridade, por começar inúmeras tarefas e não terminá-las no prazo ou ainda, abandoná-las pelo caminho. Era visto por alguns, como um revolucionário, outros, como um artista e por muitos, um louco irresponsável - mas era a minha estrutura cerebral danificada no meu nascimento, que ditava uma boa parte desse comportamento: eu era o Fabão inteligentíssimo, de humor sagaz e com sarcasmo ativado “no talo”, mas incapaz de administrar sua própria carreira, de manter foco e objetivos, de cumprir suas metas pessoais e profissionais.

Uma das coisas que me revoltavam e eu não conseguia entender é que, como alguns amigos ou conhecidos, assumidamente com intelecto menor que o meu conseguiam atingir sucesso em sua vida  e eu, não? Como eu, com todo esse conhecimento imensurável sobre os mais variados temas e um dos melhores na minha área de atuação (porque quando eu pego uma coisa para fazer que eu gosto, não sossego enquanto não ficar expert no assunto) não consigo sair desse loop infinito de não sair do mesmo lugar?

“Fabio, você não nasceu para estar aqui, nesse fim de mundo.”

E na minha cabeça:

“É, eu sei. Meu cérebro é que não entende isso e me sabota toda vez que eu tento.”

Muitas décadas depois, já com 49 anos de idade e após ter passado por um longo processo de terapia e autoconhecimento da minha mente e cansado de sofrer na vida, fui diagnosticado com TDAH e Superdotação (com um pezinho no espectro autista) - um conceito moderno, que não existia na minha época e que talvez se tivesse sido diagnosticado antes, minha vida não teria sido todo o caos que foi, nesses últimos 50 anos.

Isso explicou praticamente todo o meu comportamento, as grandes cagadas emocionais que me meti, o prazer da irresponsabilidade emocional, do risco, da facilidade para entrar em processos depressivos e da total falta de foco em determinados períodos - que nem medicamento resolve.

Tem dias que eu simplesmente ignoro a sua existência, tem dias que eu quero produzir como se amanhã fosse o dia da minha morte e eu precisasse terminar uma obra prima antes disso. Tem dias que meu TOC (Transtorno obsessivo-compulsivo) está em alta, precisando que eu cumpra uma série de “rituais” antes de trabalhar ou de sair de casa. E tem vezes que um trecho de uma música fica na minha cabeça 24 horas por dia, A PORRA DA SEMANA TODA, podendo ser uma parte da 5ª Sinfonia de Beethoven, a abertura de uma novela ou “Menino de Vó”, uma tortura mental que me impede de pensar, de raciocinar e que só colocando fones de ouvido com outras músicas é que eu consigo ter um pouco de alívio para organizar meus pensamentos. E tem vezes que meus pensamentos não conseguem me deixar dormir, como se meu cérebro tivesse um controle remoto que fosse zapeando cenas da minha vida, pulando a cada intervalo de 5 ou 10 segundos.

De igual forma, às vezes acordo com insights de pensamentos e frases filosóficas profundas que não sei de onde saíram, ou com letras de músicas satíricas, ideias de piadas, ou a solução para um problema que não consegui resolver no dia anterior - mas também com uma melancolia tão profunda, que me sinto incapaz de sair da cama e chego até a a pensar nesses momentos: “Acordar, pra quê?”.

A única parte positiva disso tudo foi a minha super dotação - voltada para o conhecimento (que absorvo todos os dias, sem parar), a criatividade, a capacidade extraordinária de reconhecer padrões visuais e de comportamento, de “ler” as pessoas em segundos, já sabendo de suas reais intenções - mas sendo sabotado constantemente pela minha própria mente, que luto diariamente para domá-la, com medicamentos exercícios para concentração e meditação e em breve, mais exercícios físicos.

(suspiro)

Portanto, pais e mães de bebês que sobreviveram à um parto complicado, não deixem de acompanhar seus filhos, de observar seu comportamento, seu relacionamento social, sua evolução cognitiva, sua inteligência. Como sobrevivente de negligência médica com sequelas, afirmo mais uma vez que SE TIVESSE SIDO DIAGNOSTICADO PRECOCEMENTE, minha vida teria sido OUTRA, com menos dor e mais sucesso em meus projetos e relacionamentos.

Pois “sobreviver” não significa que está tudo bem, apenas que você venceu a morte, naquele momento.

As consequências persistem, e elas doem. Fiquem bem.